quinta-feira, 30 de março de 2017

                                                    O ginecologista
                                                                             Magaly Andriotti Fernandes
Passados os cinquenta anos, aposentada da minha principal atividade de trabalho, e precisando das atenções de um ginecologista, me pus a pensar sobre esse fazer. Eu passei bons vinte nove anos ouvindo crimes e fazendo intervenções nesse campo tão conflitivo da sociedade. Dentro dele escolhi a maternidade no cárcere para me especializar. Por um bom período trabalhei com os abusadores sexuais, quando cheguei na prisão feminina, os bebes que lá se encontravam, os que eram separados das mães, as gestantes, fizeram que esse fosse o carro chefe do meu exercício funcional.
Viver ali, trabalhando onde a vida nasce. Será que tem um lugar especifico onde a vida nasce? Mas estar ali, amparar os recém nascidos em seu momento inicial, os ver chorar, leva-los até seus pais. Sim pois já tem alguns anos que os pais também estão ali junto nesse instante inaugural tão importante do ser humano. Não só amparar, dele depende todo um resto de vida. Eu sou muito grata ao meu obstetra. Tive uma única gestação gemelar. Um parto normal e um induzido. Muito briguei com meu médico pelo induzido. Tinha que ser assim, meu útero não voltava a contrair e entrar em trabalho de parto, e lá estava meu segundo filho em seu processo de vinda ao mundo.
Hoje nos mulheres mais do que nunca estamos buscando o autoconhecimento, e optando pelo parto normal. Eu já há trinta e quatro anos atrás queria, e lutei para que assim o fosse. Eu naquela época não tinha plano de saúde, meus filhos nasceram pelo SUS, num grande hospital escola.  O parto era humanizado. Humanizado, é muito esquisito assim dizer, como poderia ser diferente se somos nos humanos a parir, a atender. Mas acontece que hoje com a ida do parto para o mundo hospitalar ele deixou de ser um evento meramente familiar, passou para outro campo de poder e saber; o saber médico. 
Na minha casa, muitos partos foram feitos. Minhas primas e primos lá nasceram. Cresci, vendo aquele movimento todo, os homens na rua conversando, as vezes fumando, bebendo. As crianças apartadas, e as mulheres a ferver agua, lençóis com sangue sendo levados para o tanque. Um murmurinho, conversas a baixo ton. E o momento do choro, só felicidade um novo membro vindo a compor a família. A parteira sempre a mesma, e o médico também. Só iam para o hospital se fosse cesariana, e foram poucos na família.  Minha mãe em seu primeiro parto, muito ansiosa, nos conta, que não sabia como ia ser, por onde sairia aquele bebe, e muito menos como ali tinha entrado. Esse desconhecimento de si, de seu corpo, não é exclusivo dela, matou e mata muitas mulheres. Conhecer-se, se permitir viver a gestação com todas as novidades de sensações e sentimentos que a povoam. Gerar um ser. Um romance, duas famílias se constituindo numa, a humanidade ressurgindo ali.
O consultório do ginecologista é um espaço onde se pode e se fala de temas muito íntimos. De nossa sexualidade, ali não tem muito como se esconder o que se faz ou se deixa de fazer.  O parto que deve ser um momento festivo da vida, mas nem sempre, os bebes humanos, e as famílias tem seus conflitos e sua ancestralidade, tem horas que nasce um precisando de mais atenção que nunca, e esse grupo tem que estar ali firme e forte. E é nesse espaço que se é acolhida e se ganha rumo nos primeiros passos da maternidade. No hospital que meus filhos nasceram tinha uma figura que para mim foi muito importante a enfermeira obstétrica, uma segunda mãe.
E para além desse quarteto, casal, ginecologista e recém-nascido, está a família mais ampla. Lá fora naquela expectativa, e que hoje também perdeu a clareza de sua função. Penso que para além da ginecologia, o mundo hoje está muito fragmentado. Colocamos as crianças fora junto com a agua do parto. Ditado de minha avó materna.  Estamos dicotomizados, partidos, perdemos o rumo da história.  A ciência se desumanizou.
Porto Alegre, 30 março 2017.