O ginecologista
Magaly
Andriotti Fernandes
Passados os
cinquenta anos, aposentada da minha principal atividade de trabalho, e
precisando das atenções de um ginecologista, me pus a pensar sobre esse fazer.
Eu passei bons vinte nove anos ouvindo crimes e fazendo intervenções nesse
campo tão conflitivo da sociedade. Dentro dele escolhi a maternidade no cárcere
para me especializar. Por um bom período trabalhei com os abusadores sexuais,
quando cheguei na prisão feminina, os bebes que lá se encontravam, os que eram
separados das mães, as gestantes, fizeram que esse fosse o carro chefe do meu exercício
funcional.
Viver ali,
trabalhando onde a vida nasce. Será que tem um lugar especifico onde a vida
nasce? Mas estar ali, amparar os recém nascidos em seu momento inicial, os ver
chorar, leva-los até seus pais. Sim pois já tem alguns anos que os pais também estão
ali junto nesse instante inaugural tão importante do ser humano. Não só
amparar, dele depende todo um resto de vida. Eu sou muito grata ao meu
obstetra. Tive uma única gestação gemelar. Um parto normal e um induzido. Muito
briguei com meu médico pelo induzido. Tinha que ser assim, meu útero não
voltava a contrair e entrar em trabalho de parto, e lá estava meu segundo filho
em seu processo de vinda ao mundo.
Hoje nos
mulheres mais do que nunca estamos buscando o autoconhecimento, e optando pelo
parto normal. Eu já há trinta e quatro anos atrás queria, e lutei para que
assim o fosse. Eu naquela época não tinha plano de saúde, meus filhos nasceram
pelo SUS, num grande hospital escola. O
parto era humanizado. Humanizado, é muito esquisito assim dizer, como poderia
ser diferente se somos nos humanos a parir, a atender. Mas acontece que hoje
com a ida do parto para o mundo hospitalar ele deixou de ser um evento
meramente familiar, passou para outro campo de poder e saber; o saber
médico.
Na minha casa,
muitos partos foram feitos. Minhas primas e primos lá nasceram. Cresci, vendo
aquele movimento todo, os homens na rua conversando, as vezes fumando, bebendo.
As crianças apartadas, e as mulheres a ferver agua, lençóis com sangue sendo
levados para o tanque. Um murmurinho, conversas a baixo ton. E o momento do
choro, só felicidade um novo membro vindo a compor a família. A parteira sempre
a mesma, e o médico também. Só iam para o hospital se fosse cesariana, e foram
poucos na família. Minha mãe em seu
primeiro parto, muito ansiosa, nos conta, que não sabia como ia ser, por onde
sairia aquele bebe, e muito menos como ali tinha entrado. Esse desconhecimento
de si, de seu corpo, não é exclusivo dela, matou e mata muitas mulheres.
Conhecer-se, se permitir viver a gestação com todas as novidades de sensações e
sentimentos que a povoam. Gerar um ser. Um romance, duas famílias se
constituindo numa, a humanidade ressurgindo ali.
O consultório do
ginecologista é um espaço onde se pode e se fala de temas muito íntimos. De
nossa sexualidade, ali não tem muito como se esconder o que se faz ou se deixa
de fazer. O parto que deve ser um
momento festivo da vida, mas nem sempre, os bebes humanos, e as famílias tem
seus conflitos e sua ancestralidade, tem horas que nasce um precisando de mais atenção
que nunca, e esse grupo tem que estar ali firme e forte. E é nesse espaço que
se é acolhida e se ganha rumo nos primeiros passos da maternidade. No hospital
que meus filhos nasceram tinha uma figura que para mim foi muito importante a
enfermeira obstétrica, uma segunda mãe.
E para além desse
quarteto, casal, ginecologista e recém-nascido, está a família mais ampla. Lá
fora naquela expectativa, e que hoje também perdeu a clareza de sua função. Penso
que para além da ginecologia, o mundo hoje está muito fragmentado. Colocamos as
crianças fora junto com a agua do parto. Ditado de minha avó materna. Estamos dicotomizados, partidos, perdemos o
rumo da história. A ciência se
desumanizou.
Porto Alegre,
30 março 2017.